quinta-feira, novembro 09, 2006

Nudez...


Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vinguede meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte ?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai,
além da pobre área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugido que enfim capturei,
não mais visando aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto,
numa casta expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz.
E dou notícia estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos,um calar de serenos
desidratados sublimes ossuáriossem ossos;
a morte sem os mortos;
a perfeita anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio da alma,
que é apenas alma, e se dissolve .

( Carlos Drummond de Andrade - Antologia Poética, 1982)

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