domingo, setembro 23, 2007

Septuagésima Sétima Voz - Relâmpagos, bilhetes e beijos partidos


(...)
"- Me diga, há quanto tempo você não chora? Cortando cebolas não vale. Muito menos chorar de rir."
(...)
"O Homem louco acorda de manhã, toma café e vai pro trabalho. Chega lá, conversa com seus amigos e depois trabalha. Depois do trabalho toma uma bebidinha, conversa mais um pouco com os amigos e volta pra casa. Depois descansa e assim vive feliz. Esta é a história do homem louco."
(...)
" Concha

A lua cheia
veste uma camisa de ar
à alvorada ao crepúsculo
os lobos cantam seu grave coral
azul é o sol invisível
na fechadura peluda
do seu olhar"
(...)
"Bem, o livro descrevia com minúcia o encontro de um jovenzinho com uma menina, entre as sebes de um jardim perfumado e úmido. Ela parecia voltar de um passeio e tinha na mão uma pá de jardinagem. Seus cabelos eram de um louro avermelhado e seu rosto era salpicado de manchinhas cor-de-rosa.
O menino ficou vivamente impressionado com o fulgor de seus olhos, que eram profundamente negros, mas que ele, levado pelo fato de ela ser loura, achou serem azuis.
- Eram negros, mas ele achou que eram azuis?
- Isso. Porque a impressão que a menina causou nele foi tão forte, que ele não pôde pôr seu espírito de observação pra funcionar. recebeu um grande impacto. E durante muito tempo, todas as vezes que pensava nela, a lembrança do fulgor de seus olhos (negros) surgia em sua mente como se fossem vivamente azuis.!
(...)
"- Pára, Grande, você está inventando isso só pra complicar o seu poema. E porque o olho que aparece lá não pode ser azul, assim como está escrito?
- Porque são olhos pretos - ele afirmou rapidamente.
Eu estava enganada, ou o Grande parecia meio sem graça?"
(...)
"Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera"
(...)
" - E o título? Você já entendeu o título?
- Que título?
- Do meu poema."
(...)
"- Pode confiar em mim, sou muito teu amigo."
(...)
" - Você quer entender tudo em linha reta, Verônica."
(...)
"olhos pretos tão absolutamente lindos que chegam a ser azuis. Esse pedacinho você já entendeu?"
(...)
" Lá vem o Chico caminhando pelo corredor, também tem olhos escuros, com certeza pensando naquelas composições, me olha muito sério. Existe coisa mais difícil que traduzir em palavras um olhar?
- Não - concordou Alexandre - É por isso que inventaram a poesia.
(...)
- Aos Trancos e Relâmpagos - Vilma Arêas -

Septuagésima Sexta Voz - Vieira




Manha chuvosa, jardim ensopado, melancolia.

- Um tostão por seus pensamentos.

O João, que chegava com um embrulhinho para o velho.

- Xexéu! - respondeu Íssimo por mim.
- Tive um sonho...
-Outro?
- Complicado...
- "El sueño, autor de representaciones, en su teatro sobre el viento armado"...

Teatro armado sobre o vento. Fiquei mais triste ainda.

- E o que mais?
Falei-lhe do texto de Vieira, sobre o tempo e o amor.
- Mostra lá.
Entreguei-lhe o livro, ele leu em voz alta, soltando um techinho e outro:
- "Tudo muda o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba... São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho"...

Eu já estava chorando.
- O que é isso, Verônica?
Me deu um abraço.
- Não é tão grave assim.
Mas eu copiava a chuva: chorava cada vez mais.
- Garota, garota, você tem tanto tempo ainda...
Segurou meu queixo com a mão, obrigando-me a olhá-lo.
- Vou te contar outro segredo.
- O terceiro?
- O terceiro. Esse negócio de amor e mudança. Presta atenção, hein?, porque é meio complicado.
- Diga.

- É o seguinte: o amor só continua amor porque se torna diferente com o tempo; se ficar igual, desaparece.

Parei de chorar, porque já estava meio distraída.
- Só continua porque muda.
Ele sorria.
- É.
- Meu, isso é ainda mais estranho do que os olhos do Grande, que são azuis porque são muito pretos.

- Aos Trancos e Relâmpagos - Vilma Arêas -

Septuagésima Quinta Voz - De prata


Em boca fechada não entra mosca.

Palavras da minha avó.

E ainda:

- O silêncio é de ouro, a palavra é de prata.

Sem os vestidos brilhantes da Berta, ela me ensinou a pilar café lá no sítio. Eu era tão pequena que ela punha um tijolo para dar altura. E segurava o pilão junto comigo. E cantávamos ao mesmo tempo, ritmadas pelo golpe das mãos:


"Pé de pilão,
carne-seca com feijão!"`

Às vezes eu implicava, de pura felicidade.
- Pilamos café e falamos de feijão.Vamos inventar outra?
- Menina inventadeira!
Eu, já às gargalhadas:

"Pé de chulé,
pão, manteiga com café!"

- Mas que menina inventadeira!

Mas ela é que era inventadeira: sexta-feira não podia cortar as unhas porque dava azar, vassou detrás da porta espantava visitas, almas penadas podiam virar vento nas janelas, se a gente olhava demais os brotos novos eles não cresciam, e em certas ocasiões, se a gente falasse, dava quebranto.

- O silêncio é de ouro, a palavra é de prata.

Mesmo assim contou uma história esquisita, que até hoje me dá arrepios:

"Era um homem sozinho, entre as ávores. E ali ficou. Sozinhos, seus olhos se fecharam rente às pedras. Suas mãos esfriaram, sem ninguém, no barro, sobre as folhas secas, perto dos caroços de frutas, das conchas quebradas, das formigas andarilhas. Seu corpo caiu sobre a terra. Sua boca morreu no chão, como fruto."

- Como era o rosto dele?
Eu perguntava cheia de angústia.
- Nunca tirou retrato. Para não morrer.

Também é uma história complicada. Não é só a poesia. Será que o Grande tem razão? E o Cara com aquelas composições...?

- Aos Trancos e Relâmpagos - Vilma Arêas -

quinta-feira, setembro 20, 2007

Septuagésima Quarta Voz - Suicídio


Um vento frio entra pela janela... O frio sempre me deixa reflexiva, e hoje estou com vontade de contar uma história de fadas, bruxas, duendes e outras figuras fantasiosas que povoam o universo infantil. Que venha o conto de fadas...


"Era uma vez uma princesa, outrora bela, única, sonhadora e feliz. A vida seguia tranquila, cheia de sonhos, fantasias, festas, príncipes e reinos alegres, até que um dia a princesa foi enfeitiçada por uma bruxa má. A bruxa má, invejosa, queria roubar a vida da princesa, seus sonhos, seu futuro, e a manteve adormecida, perdida no tempo e no espaço, definhando cada dia mais. Seus pais, o rei e a rainha, chamaram os maiores especialistas do mundo para que o feitiço fosse revertido, mas todos eles diziam que o pior era inevitável, e que a princesa jamais voltaria à vida. Mas a bruxa má não se deu por satisfeita. Ela queria mais... e paralisou todos no reino encantado..."


Em muitos momentos, muitos de nós permanecemos exatamente como a princesa. Adormecidos, perdidos, desiludidos, confusos... E muitas vezes o final não é "e viveram felizes para sempre", por um simples motivo: nossa vida não é um filme. Nossa vida não é um conto de fadas. E apesar de a vida ultrapassar todo entendimento, viver é nossa única e melhor opção.

Hoje um amigo disse querer morrer, aprisionado no encantamento de uma bruxa má chamada depressão. Eu o desafiei a tentar puxar o gatilho de uma vez... mas para meu alívio, a vontade de viver venceu.

Que a vida sempre vença.


- Anna Emíllia Meira Soares - (Texto escrito em 20/09/2006)

quarta-feira, setembro 05, 2007

Septuagésima Terceira Voz - Retrato


"Esse matagal sem fim...
Essa estrada, esse rio seco...
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo...
O retrato da minha vida,
É amar em segredo!

Não quer saber de mim,
E eu vivendo da tua vida...
Deus no céu e você aqui...
A esperança é quem me abriga !

Esses campos não tardam em florir,
Já se espera uma boa colheita!
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita .

Mas e você o que faz,
Que não repara no chão
Por onde tem que passar?
E pisa em meu coração?

O teu beijo em meu destino,
Era tudo o que eu queria!
Ser teu homem, teu menino!
O ser amado de todo dia."

- Djavan -

Septuagésima Segunda Voz - Milagreiro


"Agora vamos ter os girassóis do fim do ano
e o calor vem desumano!
Tudo irá se expandir, crescer com as águas!
Quiçá, amores nos corações.

E um santeiro, milagreiro,
prevê a dor de terceiros,
e diz que a vida é feita de ilusão!
E um santeiro, milagreiro,
prevê a dor de terceiros,
e diz que a vida é feita de ilusão!

Aquela que um dia o fez sonhar se foi com o outro,
no dia em que os dois se casariam!
Por amor ele aluou...
Hoje o seu pesar cintila nos varais:
usou as sete vidas e não foi feliz jamais!

Toda a imensidão...
Passou pela vida e foi cair na solidão...
Mais um santo para esculpir é o que lhe vale,
pra evitar que o rancor suas ervas se espalhe!"


- Djavan -