domingo, setembro 23, 2007

Septuagésima Sexta Voz - Vieira




Manha chuvosa, jardim ensopado, melancolia.

- Um tostão por seus pensamentos.

O João, que chegava com um embrulhinho para o velho.

- Xexéu! - respondeu Íssimo por mim.
- Tive um sonho...
-Outro?
- Complicado...
- "El sueño, autor de representaciones, en su teatro sobre el viento armado"...

Teatro armado sobre o vento. Fiquei mais triste ainda.

- E o que mais?
Falei-lhe do texto de Vieira, sobre o tempo e o amor.
- Mostra lá.
Entreguei-lhe o livro, ele leu em voz alta, soltando um techinho e outro:
- "Tudo muda o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba... São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho"...

Eu já estava chorando.
- O que é isso, Verônica?
Me deu um abraço.
- Não é tão grave assim.
Mas eu copiava a chuva: chorava cada vez mais.
- Garota, garota, você tem tanto tempo ainda...
Segurou meu queixo com a mão, obrigando-me a olhá-lo.
- Vou te contar outro segredo.
- O terceiro?
- O terceiro. Esse negócio de amor e mudança. Presta atenção, hein?, porque é meio complicado.
- Diga.

- É o seguinte: o amor só continua amor porque se torna diferente com o tempo; se ficar igual, desaparece.

Parei de chorar, porque já estava meio distraída.
- Só continua porque muda.
Ele sorria.
- É.
- Meu, isso é ainda mais estranho do que os olhos do Grande, que são azuis porque são muito pretos.

- Aos Trancos e Relâmpagos - Vilma Arêas -

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